quarta-feira, 10 de junho de 2009

Ambiente alfabetizador

AMBIENTE ALFABETIZADOR

Diz-se que um ambiente é alfabetizador quando promove um conjunto de situações de usos reais de leitura e escrita nas quais as crianças têm a oportunidade de participar. Se os adultos com quem as crianças convivem utilizam a escrita no seu cotidiano e oferecem a elas a oportunidade de presenciar e participar de diversos atos de leitura e de escrita,elas podem, desde cedo, pensar sobre a língua e seus usos, construindo idéias sobre como se lê e como se escreve.

Na escola são variadas as situações de comunicação que necessitam da mediação pela escrita. Isso acontece, por exemplo, quando se recorre a uma instrução escrita de uma regra de jogo, quando se lê uma notícia de jornal de interesse das crianças, quando se informa sobre o dia e o horário de uma festa em um convite de aniversário, quando se anota uma idéia para não esquecê-la ou quando o professor envia um bilhete para os pais e tem a preocupação de lê-lo para as crianças, permitindo que elas se informem sobre o seu conteúdo e intenção.

Todas as tarefas que tradicionalmente o professor realizava fora da sala e na ausência das crianças, como preparar convites para as reuniões de pais, escrever uma carta para uma criança que está se ausentando, ler um bilhete deixado pelo professor do outro período etc., podem ser partilhadas com as crianças ou integrarem atividades de exploração dos diversos usos da escrita e da leitura.

A participação ativa das crianças nesses eventos de letramento configura um ambiente alfabetizador na instituição. Isso é especialmente importante quando as crianças provêm de comunidades pouco letradas, em que têm pouca oportunidade de presenciar atos de leitura e escrita junto com parceiros mais experientes. Nesse caso, o professor torna-se uma referência bastante importante. Se o educador trouxer os diversos textos utilizados nas práticas sociais para dentro da instituição, estará ampliando o acesso ao mundo letrado, cumprindo um papel importante na busca da igualdade de oportunidades.

Algumas vezes, o termo “ambiente alfabetizador” tem sido confundido com a imagem de uma sala com paredes cobertas de textos expostos e, às vezes, até com etiquetas
nomeando móveis e objetos, como se esta fosse uma forma eficiente de expor as crianças à escrita. É necessário considerar que expor as crianças às práticas de leitura e escrita está relacionado com a oferta de oportunidades de participação em situações nas quais a escrita e a leitura se façam necessárias, isto é, nas quais tenham uma função real de expressão e comunicação.

A experiência com textos variados e de diferentes gêneros é fundamental para a
constituição do ambiente de letramento. A seleção do material escrito, portanto, deve estar guiada pela necessidade de iniciar as crianças no contato com os diversos textos e de facilitar a observação de práticas sociais de leitura e escrita nas quais suas diferentes funções e características sejam consideradas. Nesse sentido, os textos de literatura geral e infantil, jornais, revistas, textos publicitários etc. são os modelos que se pode oferecer às crianças para que aprendam sobre a linguagem que se usa para escrever.
O professor, de acordo com seus projetos e objetivos, pode escolher com que gêneros vai trabalhar de forma mais contínua e sistemática, para que as crianças os conheçam bem.

Por exemplo, conhecer o que é uma receita culinária, seu aspecto gráfico, formato em
lista, combinação de palavras e números que indicam a quantidade dos ingredientes etc., assim como as características de uma poesia, histórias em quadrinhos, notícias de jornal etc.

Alguns textos são adequados para o trabalho com a linguagem escrita nessa faixa
etária, como, por exemplo, receitas culinárias; regras de jogos; textos impressos em
embalagens, rótulos, anúncios, slogans, cartazes, folhetos; cartas, bilhetes, postais,
cartões (de aniversário, de Natal etc.); convites; diários (pessoais, das crianças da sala etc.); histórias em quadrinhos, textos de jornais, revistas e suplementos infantis;
parlendas, canções, poemas, quadrinhas, adivinhas e trava-línguas; contos (de fadas, de assombração etc.); mitos, lendas, “causos” populares e fábulas; relatos históricos; textos de enciclopédia etc.

O tempo é – todos nós, professores, sabemos muito bem – um fator de peso na instituição escolar: sempre é escasso em relação à quantidade de conteúdos fixados no programa,nunca é suficiente para comunicar às crianças tudo o que desejaríamos ensinar-lhes em cada ano escolar.

Quando se opta por apresentar os objetos de estudo em toda sua complexidade e por
reconhecer que a aprendizagem avança através de sucessivas reorganizações do
conhecimento, o problema da distribuição do tempo deixa de ser simplesmente
quantitativo: não se trata apenas de aumentar o tempo ou de reduzir os conteúdos: tratase de produzir uma mudança qualitativa na utilização do tempo didático.

Para concretizar essa mudança, parece necessário – além de ousar romper com a
correspondência linear entre parcelas de conhecimento e parcelas de tempo – cumprir
pelo menos duas condições: manejar com flexibilidade a duração das situações didáticas e tornar possível a retomada dos próprios conteúdos em diferentes oportunidades e a partir de perspectivas diversas. Criar essas condições requer pôr em ação diferentes modalidades organizativas: projetos, atividades habituais, seqüências de situações e atividades independentes coexistem e se articulam ao longo do ano escolar.


1. Os projetos – Além de oferecer, como já assinalamos, contextos nos quais a leitura ganha sentido e aparece como uma atividade complexa, cujos diversos aspectos se articulam ao se orientar para a realização de um propósito - permitem uma organização muito flexível do tempo: segundo o objetivo que se persiga, um projeto pode ocupar somente uns dias ou se desenvolver ao longo de vários meses.

Os projetos de maior duração proporcionam a oportunidade de compartilhar com os alunos o planejamento da tarefa e sua distribuição no tempo: uma vez fixada a data em que o produto final deve estar elaborado, é possível discutir um cronograma retroativo e definir as etapas que será necessário percorrer, as responsabilidades que cada grupo deverá assumir e as datas que terão de ser respeitadas para se alcançar o combinado no prazo previsto.

Por outro lado, a sucessão de projetos diferentes – em cada ano letivo e, em geral, ao
longo da escolaridade – torna possível voltar a trabalhar sobre a leitura sob diferentes
pontos de vista, para cumprir diferentes propósitos e em relação a diferentes tipos de
texto.


2. As atividades habituais, que se reiteram de forma sistemática e previsível, uma vez por semana ou por quinzena, durante vários meses ou ao longo de todo o ano escolar, oferecem a oportunidade de interagir intensamente com um gênero determinado em cada ano da escolaridade, e são particularmente apropriadas para se comunicar certos aspectos do comportamento leitor.

Na 1ª série do ensino fundamental, por exemplo, uma atividade habitual que se pode
realizar é “A hora dos contadores de histórias”: as crianças se responsabilizam, de forma rotativa, por contar ou ler um conto que elas mesmas escolheram (orientadas pela professora) e cuja apresentação prepararam previamente, de tal modo que se torne clara e compreensível para o auditório. A criança que assume o papel de “contador de histórias” deve cumprir certos procedimentos: explicar as razões que a levaram a escolher a história, conhecer alguns dados sobre a vida e a obra do autor, comentar com seus companheiros os episódios ou personagens que lhe são atrativos (ou não). Terminada a leitura (ou relato), os demais alunos podem intervir fazendo perguntas ou comentários. A discussão se generaliza: analisam-se as ações dos personagens, comparam-se com outros conhecidos, são feitas apreciações sobre a qualidade do que se acaba de ler…

Em outras séries, a atividade habitual costuma centrar-se em outros gêneros: pode tratar-se do comentário de “curiosidades científicas” – e preparar-se para responder às inquietações que as crianças apresentam sobre o funcionamento da natureza e a
intensificar seu contato com o discurso informativo-científico - ou da leitura e discussão de notícias, atividade dirigida a formar leitores críticos dos meios de comunicação.

As atividades habituais também são adequadas para cumprir outro objetivo didático: o de favorecer a aproximação das crianças a textos que não abordariam por si mesmas por causa de sua extensão. Ler cada semana um capítulo de um romance é uma atividade que costuma ser frutífera nesse sentido. A leitura é compartilhada: a professora e os alunos lêem alternadamente em voz alta; escolhe-se um romance de aventuras ou de suspense que possa captar o interesse das crianças e se interrompe a leitura em pontos estratégicos, para criar expectativa. Algumas crianças - nem sempre as mesmas – se interessam tanto que conseguem o livro para continuar lendo em casa e depois contam a seus colegas os capítulos que já leram para que a leitura compartilhada possa avançar

A forma como se distribui o tempo de aula representa a importância que se atribui aos
diferentes conteúdos. Ao destinar momentos específicos e preestabelecidos que serão sistematicamente dedicados à leitura, comunica-se às crianças que ela é uma atividade muito valorizada. Este é um dos benefícios que as atividades habituais proporcionam.


3. As seqüências de atividades estão direcionadas para se ler com as crianças
diferentes exemplares de um mesmo gênero e subgênero (poemas, contos de aventuras, contos fantásticos…); diferentes obras de um mesmo autor ou diferentes textos sobre um mesmo tema.

Ao contrário dos projetos, que se organizam para elaboração de um produto tangível, as seqüências incluem situações de leitura cujo único propósito explícito - compartilhado com os alunos - é ler.

Ao contrário das atividades habituais, essas seqüências têm um duração limitada a
algumas semanas de aula, o que permite realizar-se várias delas no curso do ano letivo e se ter, assim, acesso a diferentes gêneros. Contribuem para cumprir diversos objetivos didáticos: comunicar o sentido e o prazer de ler para conhecer outros mundos possíveis; desenvolver as possibilidades dos alunos de apreciar a qualidade literária (ou detectar sua ausência); formar critérios de seleção de material a ser lido; gerar comportamentos leitores como o seguimento de determinado gênero, tema ou autor.

No curso de cada seqüência se incluem – como nos projetos – atividades coletivas,
grupais e individuais. Desse modo, propicia-se tanto a colaboração entre os leitores para compreender o texto e o confronto de suas diferentes interpretações, como a leitura pessoal que permite a cada criança interagir livremente com o texto, quer dizer: reler o que mais lhe agradou, saltar o que não lhe interessa, deter-se ou voltar para verificar uma interpretação de que não está seguro… O empréstimo de livros permitirá, além disso, que as crianças possam continuar lendo em sua casa, âmbito que, em alguns casos, pode ser mais apropriado que a sala de aula para essa leitura privada.

4. As situações independentes podem classificar-se em dois subgrupos:


a) Situações ocasionais: em algumas oportunidades, a professora encontra um
texto que considera valioso e o compartilha com as crianças, embora pertença a um
gênero ou trate de um tema que não têm correspondência com as atividades que estão realizando nesse momento; em outras ocasiões, os alunos – ou alguns deles - propõem a leitura de um artigo de jornalístico, um poema ou um conto que os impressionou e cuja leitura a professora também considera interessante. Nesses casos, não teria sentido nem renunciar a ler os textos em questão porque não têm relação com o que se está fazendo, nem “inventar” uma relação inexistente; se sua leitura permite trabalhar sobre algum conteúdo significativo, a organização em uma situação independente estará justificada.

b) Situações de sistematização: estas são consideradas “independentes”
somente no sentido de que não contribuem para cumprir os propósitos apresentados em relação à ação imediata (com as elaborações do produto ao qual aponta um projeto ou com o desejo de “saber como continua” um romance de aventuras que gera suspense e emoção, por exemplo). Em troca, guardam sempre uma relação direta com propósitos didáticos e com os conteúdos que estão sendo trabalhados. Porque permitem justamente sistematizar os conhecimentos lingüísticos construídos através das outras modalidades organizativas. Por exemplo, depois de ter realizado uma seqüência centrada na leitura de fábulas, é possível propor uma situação cujo objetivo é refletir sobre os traços que caracterizam as fábulas e as diferenciam dos contos; depois de ter confrontado certos problemas relacionados à pontuação no âmbito de um projeto de escrita, é possível propor uma situação cujo objetivo é “passar a limpo” os conhecimentos construídos ao resolver esses problemas.

É assim que a articulação de diferentes modalidades organizativas permite desenvolver situações didáticas que têm durações diferentes, que podem ser permanentes ou realizadas no curso de períodos limitados, algumas das quais se sucedem no tempo, enquanto outras se entrecruzam numa mesma etapa do ano letivo. Desse modo, a distribuição do tempo didático – em vez de se confundir com a justaposição de parcelas do objeto que seriam sucessiva e cumulativamente aprendidos pelo sujeito – favorece a apresentação escolar da leitura como uma prática social complexa e a apropriação progressiva dessa prática por parte dos alunos.

O esforço para distribuir os conteúdos no tempo de um modo que permita superar a
fragmentação do conhecimento não se limita ao tratamento da leitura – que tem sido o
eixo deste artigo –, mas sim abarca a totalidade do trabalho didático com a língua escrita.

Em primeiro lugar, leitura e escrita se inter-relacionam permanentemente: ler “para escrever” é imprescindível quando se desenvolvem projetos de produção de textos, já que estes exigem um intenso trabalho de leitura para aprofundar o conhecimento dos conteúdos sobre os quais se está escrevendo e das características do gênero em questão; reciprocamente, no âmbito de muitas das situações didáticas que se propõem, a escrita se constitui num instrumento que está a serviço da leitura, seja porque é necessário tomar notas para lembrar os aspectos fundamentais do que se está lendo, ou porque a compreensão do texto requer que o leitor elabore resumos ou quadros que o ajudem a reestruturar a informação dada pelo texto.

Em segundo lugar, os diferentes gêneros – em vez de serem distribuídos linearmente, fazendo corresponder certos escritos sociais com certas séries específicas – aparecem e reaparecem em diferentes momentos da escolaridade – de e no âmbito de situações diferentes, de tal modo que os alunos possam reutiliza-los e reanalisá-los a partir de novas perspectivas.

Em terceiro lugar, as modalidades de trabalho adotadas durante a alfabetização inicial são basicamente as mesmas que se põem em ação, uma vez que as crianças se apropriaram do sistema alfabético de escrita. Como as situações didáticas que se
apresentam antes e depois de as crianças aprenderam a ler e escrever no sentido
convencional do termo estão orientadas por um mesmo propósito fundamental – criar
condições que favoreçam a formação de leitores autônomos e críticos e de produtores de textos adequados à situação comunicativa que os torna necessário –, o esforço por
reproduzir na escola as condições sociais da leitura e da escrita está sempre presente.

Realmente, desde o início da escolaridade, se lê e se escreve para cumprir propósitos
definidos, centra-se o trabalho nos textos, analisa-se criticamente o lido, discutem-se
diferentes interpretações e se chega a acordos, leva-se em conta o ponto de vista do
destinatário quando se escreve, revisam-se cuidadosamente os escritos produzidos... As atividades devem permitir articular dois objetivos: conseguir que as crianças se apropriem progressivamente da “linguagem que se escreve” – do que esta tem de específico e diferente do oral-conversacional, dos diversos gêneros do escrito, da estrutura e do léxico que são próprios de cada um deles – e que aprendam a ler e escrever por si mesmas.

Em alguns casos, o professor atua como mediador, lendo diferentes textos para as
crianças, ou escrevendo os textos ditados que elas compõem oralmente; em outros casos, as situações de leitura tendem a deparar diretamente as crianças com os textos, para buscar informações que necessitam, para localizar um dado determinado, para buscar indícios que lhes permitam verificar ou rejeitar suas antecipações sobre o que está escrito.

E, do mesmo modo, as situações de escrita apresentam para as crianças desafios de
produzir textos por si mesmas, o que as leva a se concentrar não só na “linguagem que se escreve”, como também em como fazer para escrever, em aprender, cada vez melhor o modo particular como o sistema de escrita representa a linguagem. Quando a situação exige que as crianças leiam ou escrevam diretamente, a atividade pode referir-se a textos completos ou se focalizar em algum fragmento de um texto que foi lido, produzido ou ditado pela professora; pode ser individual ou grupal; pode responder a um propósito imediato do ponto de vista das crianças – por exemplo, fazer cartazes e convites para divulgar a função teatral que se está preparando – ou responder somente a um propósito cujo cumprimento não é imediato, mas é altamente significativo para as crianças nesta etapa: aprender a ler e escrever.

Delineamos uma modalidade alternativa de distribuição do tempo didático, uma
modalidade que responde à necessidade de produzir uma mudança qualitativa na
apresentação escolar da leitura. E que da ênfase as práticas sociais de leitura, o que
possibilita a formação de um ambiente alfabetizador.


Fonte:
LERNER,Delia de Zunino e PIZANI. Alicia Palácios .A aprendizagem da língua escrita na escola. Porto Alegre, Artmed, 1995.
LERNER, D. Ler e escrever na escola: o real, o possível e o necessário. Porto Alegre: Ed. Artmed.2000.

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